Fatos e acontecimentos

Aprendendo com o inimigo

trabalho-escravoRecentemente, por meio de um filme norte-americano de ação, Animal (2005), de David J. Burke, com roteiro de David C. Johnson, tive mais uma oportunidade não só de rever um ator negro excepcional de meus tempos adolescentes, Jim Brown, como de tomar contato com um documento – há quem diga que é real e quem o negue – em que um fazendeiro ensina seus pares a dominar seus escravizados. Conhecido como “A Carta de Willy Linch”, o tal documento, que se utiliza de palavras simples e diretas, se baseia na tese maquiavélica do “dividir para governar”.

Real ou não, a tal carta não poderia ser mais oportuna, tanto para este período do pós-lutas pelos Direitos Civis, dos EUA, quanto nesses tempos em que o movimento negro brasileiro se acomodou aos limites partidários, se tornou coadjuvante nas lutas pelas questões de gênero, de classes sociais e de tantas outras que valorizam muito mais nossas diferenças do que o que temos em comum.

É exatamente isso que o musculoso e truculento James Allen (Ving Rhames, também em interpretação impecável), conhecido por Animal, descobre na cadeia, onde cumpre pena por assalto a mão armada, ao tomar contato com o militante revolucionário dos anos 1960, Berwell (Jim Brown). Filmes sobre cadeias já vimos muitos, de guerra de gangues também, mas poucos se propõem a nos fazer pensar no porquê dessas disputas por um poder tão irreal quanto efêmero.

FOTOS: REPRODUÇÃO
Escravizados seguem para o trabalho em fazendo americana

Como o pai é o principal espelho para o filho, Darius Allen (Terrence Howard) segue exatamente os passos de Animal. É o herdeiro da fama, da truculência, do apelido (animalzinho) e, enquanto o pai está na prisão, constrói seu próprio espaço de poder. Nas ruas, Darius não tem noção do que está ocorrendo por detrás das muralhas, onde o pai vive um processo de transformação interna. A começar pela leitura da biografia de Malcoln X, que recebe de Berwell e, depois, por receber do revolucionário uma cópia da carta de Willy Lynch, cujo nome teria inspirado a criação da palavra linchamento (em inglês, lynching, do verbo tolynch), como os incontáveis realizados principalmente no sul daquele país, penalizando aos afro-americanos suspeitos de transgredir as leis segregacionistas após a abolição da escravatura, em 1863.

Após a leitura dessa carta, o prisioneiro rejeita o apelido de Animal e assume seu nome James Allen (se adotasse um novo nome de origem africana ou muçulmana também seria uma excelente solução, como ocorreu com vários afro-americanos ao se conscientizar da necessidade de uma transformação da própria história e a de seu povo). E Dárius, novo “rei das ruas” nem imagina de qual será a grande herança que receberá de James e que ele a repassará a seu pequenino meio-irmão. Vale a pena descobrir assistindo ao filme.

ESCRAVIZADOR EXEMPLAR
Atormentados por fugas e rebeliões, como as que resultaram na independência do Haiti, em 1804, proprietários norte-americanos e europeus souberam que nas ilhas Caraíbas (Caribe) o fazendeiro Willy Lynch obtinha absoluto sucesso no controle de seus escravizados submissos e disciplinados e o convidaram a viajar aos EUA, onde ele proferiu uma palestra em que revelou sua estratégia de ação e a transformou na tal carta. Na internet há várias publicações de versões desse documento. Vão aqui alguns trechos bastante expressivos:

“Eu os saúdo aqui, na margem do rio James, neste ano do Senhor, de 1712. Primeiro, quero agradecer aos senhores, da Colônia de Virgínia, por me trazerem aqui. Vim para ajudá-los a resolver alguns dos seus problemas com os escravos. Seu convite me chegou, em minha modesta plantação nas Antilhas, onde tenho experimentado alguns dos mais novos – ainda que o mais antigo – métodos de controle de escravos.”

“Com esses enforcamentos, vocês não estão só perdendo estoque valioso. Vocês têm rebeliões, fugas de escravos, suas colheitas são abandonadas nos campos, o que consome seus lucros. Por vezes, suas plantações são incendiadas e seus animais, mortos. Tenho um método completamente comprovado para controlar meus escravos negros. Garanto a cada um de vocês que, se implantado corretamente, ele irá controlar os escravos por pelo menos 300 anos.”

“Verifiquei que entre os escravos existe uma série de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças, aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle. Eu vos asseguro que a desconfiança é mais forte que a confiança e a inveja mais forte que a concórdia, respeito ou admiração.”

“Deveis usar os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra os mais velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais claros contra os mais escuros. Deveis usar as fêmeas contra os machos e os machos contra as fêmeas. Deveis usar os vossos capatazes para semear a desunião entre os negros, mas é necessário que eles confiem e dependam apenas de nós.”

“Meus senhores, estas ferramentas são a vossa chave para o domínio, usem-nas. Nunca percam uma oportunidade. Se fizerdes intensamente uso delas, por um ano, o escravo permanecerá completamente dominado. O escravo depois de doutrinado desta maneira permanecerá nesta mentalidade passando-a de geração a geração.”

Tal e qual O Príncipe, de Machiavel, esse documento, escrito em 1712 e difundido tanto nos EUA quanto na Inglaterra, desde 1993, fala de poder e fornece estratégias para dominar nosso povo. A diferença é que funciona como uma “cartilha resumida”, de fácil compreensão mesmo para os pouco instruídos senhores de escravos do século 18. Por outro lado, nas entrelinhas nos alerta sobre nossa fragilidade que, vencida, nos ajudaria a conquistar o poder. Animal é um filme de ação elogiado pela crítica. Além de difundir a Carta de Willy Lynch, ele nos deixa outra lição: não adianta só ver o filme ou ler a carta, pois sem ação não há transformação.

PARA PENSAR:

“Quando os missionários chegaram, os africanos tinham a terra e os missionários, a Bíblia. Eles nos ensinaram a orar com os olhos fechados. Quando abrimos os olhos, eles possuíam a terra e nós, a Bíblia.”
(JomoKenyatta – 1894-1978 – líder, primeiro-ministro e primeiro presidente pós- independência do Quênia)

fonte: revista Raça

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